Uma reforma digital anticorrupção: precisa-se



Os resultados eleitorais das últimas eleições legislativas vieram confirmar o seguinte: a corrupção não é apenas um problema ético; é um fator político decisivo que afeta a qualidade da democracia, a coesão social e as escolhas dos cidadãos, expressas nas urnas. A fadiga ética que se pressente na população portuguesa fazia, sem cirros à vista, adivinhar a desconfiança profunda que os portugueses manifestam relativamente à sua classe política e às suas instituições. É por tal, que consideramos imperativo utilizar todas as ferramentas disponíveis para restaurar, em Portugal, a confiança nas instituições públicas. Se é em democracia que todos queremos continuar a viver, não podemos continuar a tolerar a erosão da integridade institucional, o desperdício de recursos públicos e a perpetuação de desigualdades provocadas por práticas opacas ou burocracia excessiva.

Neste contexto, a recente proposta do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF), dirigida a todos os partidos políticos que se apresentaram a eleições, aponta com clareza para o papel decisivo da tecnologia no combate à corrupção. Medidas como o reforço da rastreabilidade de decisões automatizadas, a criação de plataformas digitais públicas para monitorização de fundos europeus, ou a utilização de inteligência artificial na identificação de padrões anómalos em contratos públicos, são passos concretos para construir uma cultura de integridade e responsabilização.

No entanto, este caminho está longe de ser isento de desafios. Um dos mais relevantes prende-se com a necessidade de garantir maior interoperabilidade entre plataformas setoriais da administração pública — um problema crónico identificado por organismos como a OCDE e a Comissão Europeia. A fragmentação tecnológica entre ministérios, autarquias e organismos reguladores e de controlo compromete a eficácia das soluções digitais e limita o seu alcance, na prevenção da fraude e da corrupção. É por isso fundamental, como aliás já recomendado a Portugal, em 2022, pela OCDE, “consolidar uma arquitetura digital transversal e integrada, que permita o cruzamento eficiente de dados entre setores e instituições”.

Outro desafio central prende-se com a promoção da reutilização comercial e cívica dos dados públicos. A Comissão Europeia, no âmbito da Diretiva relativa aos Dados Abertos (2019/1024), tem insistido na necessidade de os Estados-membros criarem condições para que os dados gerados pela administração pública sejam reutilizados por empresas, investigadores e cidadãos, promovendo assim a inovação e o escrutínio público. Em Portugal, a prática continua tímida e marcada por resistências burocráticas e legais, que dificultam o acesso a conjuntos de dados que deveriam ser abertos, por princípio.

Mais recentemente, o adiamento da Estratégia Nacional para a Digitalização da Administração Pública, motivado pela dissolução do parlamento, levantou preocupações adicionais. A ausência de um plano de ação coordenado compromete a continuidade de investimentos estratégicos e gera incerteza sobre o calendário de implementação de medidas críticas para a modernização do Estado. A interrupção do impulso político num momento decisivo cria o risco de Portugal voltar a ficar para trás, numa área onde já apresenta atrasos face aos pares europeus.

Apesar destes obstáculos, os fundamentos para uma reforma digital anticorrupção estão lançados. Com canais de denúncia automatizados, algoritmos capazes de identificar conflitos de interesse e sistemas de informação que cruzem dados fiscais, patrimoniais e contratuais, é possível construir uma administração pública mais transparente e proactivamente eficaz. Mas para isso, é essencial garantir liderança política, investimento tecnológico e vontade de quebrar resistências institucionais que há muito impedem a verdadeira transformação.

Não basta proclamar a transparência. É preciso programá-la. É preciso interligá-la. E, acima de tudo, é preciso comprometer-se com ela, independentemente dos ciclos eleitorais. O combate à corrupção em Portugal não pode ser adiado mais uma legislatura.

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