“Quando os nossos filhos estudarem o século XXI no secundário, o livro de História vai dizer ‘o genocídio palestiniano’ em Gaza”



Anadolu

Já passaram mais de dois meses desde que as forças israelitas quebraram o cessar-fogo na Faixa de Gaza e continua sem haver grandes perspectivas de que as duas partes cheguem a um consenso para voltar a pousar as armas. Ainda antes do fim das tréguas, Israel bloqueou a entrada de ajuda em Gaza a 2 de março, e o cerco fez com que a situação humanitária se degradasse ainda mais. Com os ataques contínuos e o flagelo da fome, o número de mortos não pára de aumentar.

A primeira fase do cessar-fogo esteve em vigor entre 19 de janeiro e 2 de março. Só que Telavive e o movimento terrorista palestiniano não chegaram a um acordo sobre a etapa seguinte e, a 18 de março, as tropas israelitas retomaram os combates. A decisão foi justificada pelo primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, com a necessidade de libertar os reféns ainda cativos.

“O que o Hamas está a fazer [com os reféns] é claramente chantagem, é uma utilização horrível da vida das pessoas para pressionar um Estado. O Hamas está a contribuir para extremar toda a sociedade israelita, porque Benjamin Netanyahu instrumentaliza esse discurso para convencer as pessoas de que há uma insegurança ontológica da sua existência, da sua continuidade enquanto grupo identitário”, afirma Joana Ricarte, especialista em Relações Internacionais.

Israel impôs um cerco total no início de março, impedindo a entrada de comida, medicamentos, abrigos e outros bens essenciais. Como consequência, um em cada cinco palestinianos passam fome, segundo as Nações Unidas. Houve muita pressão, sobretudo por parte de organizações humanitárias, para que Israel deixasse entrar algum auxílio — uma vez que controla todas as fronteiras do território. Mas só na última quarta-feira é que o bloqueio foi interrompido: a ONU confirmou que começou a distribuir o equivalente a 90 camiões de ajuda humanitária no enclave.

“A pressão internacional [para pôr fim ao cerco] deveria ter sido muitíssima já há muito tempo e muito antes disto”, diz a professora na Universidade de Coimbra, especializada em assuntos do Médio Oriente. “A reação da comunidade internacional, quando finalmente aconteceu, foi leve, insuficiente e não vai parar a catástrofe humanitária. Noventa camiões de ajuda, como a ONU tem dito, é uma gota de água num oceano de necessidades”. Até porque antes da guerra, “entravam 500 camiões de ajuda humanitária por dia”, acrescenta.

Desde o início da ofensiva, há 19 meses, as tropas israelitas mataram mais de 53 mil palestinianos, um terço dos quais (18 mil) crianças, de acordo com os dados do Ministério da Saúde de Gaza — controlado pelo Hamas — considerados legítimos pela ONU. Entre pessoas que morreram, estão desaparecidas e fugiram desde outubro de 2023, o território perdeu cerca de 7% da sua população, passando de 2,3 milhões para 2,1 milhões de pessoas.

“O que está a acontecer em Gaza é claramente uma limpeza étnica. Aliás, a utilização do termo ‘limpeza étnica’ em relação a Israel-Palestina não é sequer nova. O deslocamento forçado e a imposição de condições de vida impossíveis já era há muito documentado por historiadores sérios, incluindo israelitas”, analisa Joana Ricarte. “Agora é bastante claro que o termo de limpeza étnica se aplica.”

E o de genocídio? “O genocídio tem um enquadramento jurídico específico do ponto de vista da prova da intencionalidade que foi construído na convenção de Genebra como crime póstumo. Só se prova a intencionalidade do genocídio depois de ele ter ocorrido. O problema é que, para o provar, Israel vai ter de abrir as fronteiras, deixar entrar observadores internacionais independentes, deixar entrar media independentes”.

Por essa razão, explica ainda a investigadora, “do ponto de vista político ainda não podemos falar em genocídio, mas do ponto de vista societal e académico é mais do que óbvio”. “No futuro, quando os nossos filhos estudarem o século XXI no secundário, o livro de história vai dizer ‘o genocídio palestiniano’ [em Gaza]. Não tenho dúvidas.”

Este episódio foi conduzido pela jornalista Mara Tribuna e contou com a edição técnica de João Luís Amorim. O Mundo a Seus Pés é o podcast semanal da editoria Internacional do Expresso. A condução do debate é rotativa entre os jornalistas Ana França, Hélder Gomes, Mara Tribuna e Pedro Cordeiro. Subscreva e ouça mais episódios.

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