Os votos no Chega são um grito: e não é contra a democracia


O terramoto político das legislativas marca um ponto de viragem na história democrática portuguesa. O bipartidarismo acabou e, ao que tudo indica, o Chega será o segundo partido com mais assentos no Parlamento, tornando-se o principal partido da oposição. Isto é histórico, mas não é surpreendente. Aconteceu em muitos países da Europa e, mais cedo ou mais tarde, chegaria também a Portugal. Em vez de nos limitarmos à condenação fácil, é urgente fazer uma análise séria e profunda sobre o porquê de um partido como o Chega ter conquistado tantos votos. Atualmente, a comunicação política é feita para o meio digital, onde os soundbites se transformam em conteúdos com forte engagement e penetração, especialmente fora dos canais tradicionais. Quem dominar esta linguagem, domina boa parte do debate político. Ignorar isto é perder o comboio da realidade.

O Chega não é um partido fascista; é um partido nacionalista de direita radical, tendo em conta a nossa geografia parlamentar. Não apresenta propostas coerentes do ponto de vista orçamental, o que é particularmente grave para um partido que se propõe a vencer eleições. A implementação do seu programa colocaria em risco as contas públicas, podendo conduzir o país à bancarrota. É fundamental percebermos as razões do crescimento do Chega, em vez de repetirmos a narrativa de que a direita radical é “um bicho-papão”. É precisamente essa postura, mantida sobretudo pela esquerda, que contribuiu para os resultados eleitorais que tiveram. A esquerda continua a agir como se o país fosse o mesmo de há décadas, ignorando a profunda transformação socioeconómica e cultural em curso.

Veja-se, principalmente, o caso do Algarve ou do baixo Alentejo. O Chega cresceu porque PS e PSD deixaram de dar respostas a distritos que foram sendo esquecidos por sucessivos governos. O partido capitaliza no descontentamento generalizado, mobilizando o eleitorado através da crítica a tudo o que está mal, mas não apresenta um programa estrutural para resolver os problemas do país. Ainda assim, o povo é soberano e decidiu como decidiu. Um dos problemas centrais é que, durante demasiado tempo não se pôde falar abertamente sobre vários temas, em particular, a imigração, como se fossem assuntos proibidos. Em democracia não pode haver tabus. Esse silêncio, em grande parte alimentado pela esquerda, acabou por abrir espaço ao Chega, que o soube ocupar e explorar politicamente.

Acima de tudo, importa perceber por que motivo a estratégia do país falhou. Investimos milhares de milhões num sistema educativo que formou jovens altamente qualificados, mas não soubemos desenvolver uma economia capaz de os reter e de lhes pagar de acordo com o investimento feito na sua qualificação — acabando muitos por procurar oportunidades em países mais competitivos, que beneficiam do talento que formámos.

Simultaneamente, atraímos mão-de-obra barata, necessária para uma economia que assenta essencialmente no turismo. O populismo não está em dizer verdades, mas em explorá-las para alimentar a ideia de que “isto é tudo igual” e que “são todos iguais”. A estratégia do Chega passa por falar de todos os problemas do país, atribuindo a sua causa à corrupção ou aos imigrantes, e a partir daí construir o discurso.

Da minha parte, não há resistência nem desrespeito pelos votos no Chega. Há sim, tristeza por os partidos tradicionais não conseguirem responder aos problemas reais dos portugueses. Quando alguém se apresenta como candidato a Primeiro-Ministro, deve ter consciência das promessas que faz — não se pode agradar a gregos e troianos ao mesmo tempo. A verdade é que a estratégia nacional falhou: preparámos gerações para um país que não corresponde à sua realidade. Formámos jovens altamente qualificados para um mercado de baixos salários, baixa produtividade e dependente do turismo.

Não se trata de relativizar nada. Coerência é olhar para dados factuais e retirar ilações. Outra coisa diferente é a vontade dos portugueses, que têm todo o direito de eleger quem quiserem. Continuarmos alienados do facto de o país ter mudado há muitos anos só irá aumentar o voto em partidos mais radicais. Fora da “bolha política”, as pessoas estão cansadas de anos e anos sem soluções. O Chega passou a ser o partido dos abstencionistas, dos que estão fartos da inação do regime. Para nos voltarmos a aproximar dessas pessoas, temos de olhar para o país real, o que temos — e não para o país idealizado.

A AD não precisa de se radicalizar. Falar com seriedade sobre segurança, imigração ou questões de género, sem viés ideológicos, não é ser radical, é ser sensato. A AD só tem de responder com boa governação. Essa é a única forma de derrotar e esvaziar o populismo. Aliás, a direita moderada só tem a ganhar se abandonar o discurso gasto da “governabilidade” e da “estabilidade”, dois chavões que não significam nada se não forem acompanhados de soluções concretas para os problemas reais das pessoas.

Portugal tem problemas estruturais que não conseguiu resolver em décadas. PS e PSD falharam ambos. Tivemos recursos, humanos e financeiros, para reformar o país, mas desperdiçámo-los em sucessivos ciclos de governação sem ambição. O resultado está à vista: baixos salários, fraca produtividade, dependência do turismo ou desigualdades territoriais profundas. Quando Pedro Nuno Santos diz que precisamos de uma reflexão profunda, não podia estar mais certo. Mas essa reflexão tem de ser mais do que um gesto retórico. Tem de ser sobre o regime, sobre a forma como temos feito política, sobre como ouvimos ou ignoramos as pessoas. Porque enquanto não o fizermos com verdade e coragem, o espaço para o populismo não vai encolher. Vai continuar a crescer. E isso não é culpa do povo. É falha do sistema.

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