Desculpas de Pedro Sánchez após a maior crise no seu Governo não satisfazem críticos



Pedro Sánchez enfrenta a maior convulsão no seu Governo desde que subiu ao poder, em 2018. Apesar dos seus esforços para limitar ao seu Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda) os danos do escândalo de corrupção protagonizado por vários dos seus colaboradores mais próximos, é opinião consensual que não será suficiente. Esta quinta-feira, o primeiro-ministro espanhol destituiu fulminantemente o secretário de Organização socialista, Santos Cerdán, uma das pessoas da sua máxima proximidade, depois de ter mantido, até à manhã desse dia, “toda a confiança” nele.

Há que recordar que Sánchez chegou ao poder, há sete anos, graças ao triunfo de uma moção de censura apresentada pelo PSOE. Com apoio de outras forças políticas, pôs fim ao Executivo do Partido Popular (PP, centro-direita), encabeçado por Mariano Rajoy desde 2011 e manchado por numerosos casos de corrupção.

O de Santos Cerdán é um escândalo em toda a linha. Um relatório demolidor elaborado pela Unidade Central Operativa (UCO) — secção de elite da Guarda Civil em funções de polícia judiciária — foi entregue ao magistrado Leopoldo Puente, do Tribunal Supremo, com copiosos indícios da existência de uma rede para cobrar comissões ilegais em troca de adjudicações de obras públicas a empresas construtoras. As provas baseiam-se em gravações feitas por um dos intervenientes, Koldo García, assistente direto de outro dos alegados implicados, o ex-ministro dos Transportes José Luis Ábalos. Este também foi número três na hierarquia do aparelho do PSOE, como secretario de Organização, e passou o testemunho a Cerdán quando este ocupava o cargo de responsável territorial do partido.

Estas três personagens viram-se envolvidas, com outra presença habitual dos procedimentos jurídicos, Víctor de Aldama, na compra e distribuição de máscaras a preços exorbitantes durante a pandemia. Por essas vendas chegaram a cobrar milhões de euros em comissões. Estes episódios puseram a descoberto a cumplicidade criminosa entre García e Ábalos, em 2024, tendo levado este último a passar de deputado socialista a independente.

Ábalos, García e Cerdán são parte consubstancial dos apoios que levaram Sánchez à liderança do PSOE em 2014 e ao Governo quatro anos mais tarde. Quando, em 2016, o secretário-geral socialista foi afastado do cargo por barões territoriais, os três acompanharam-no, a bordo de um desengonçado Peugeot 405, num percurso pelo território espanhol para entrar em contacto com os agrupamentos socialistas de todo o país, e os três estruturaram o grupo de apoio para que reconquistasse a chefia do partido nas primárias de 2017.

As averiguações feitas pela UCO quantificam em mais de 630 milhões de euros o custo das obras adjudicadas, em troca de um total de 620 mil euros em comissões cobradas só por Cerdán. A reprodução, abaixo, de algumas das conversas gravadas dá ideia do tom utilizado pelos protagonistas nas suas manobras.  

Embaraço total para o Governo e o PSOE

Quando o juiz Puente levantou, a meio da manhã de quinta-feira, o sigilo do processo e se pôde ler o seu parecer inicial com o relatório da UCO, apoderou-se dos dirigentes políticos espanhóis uma sensação de embaraço total, sobretudo nas proximidades da direção do PSOE e do Governo. A leitura das conversas entre os protagonistas do escândalo — Cerdán, Ábalos e García — sobre os mecanismos para receberem as mordidas (comissões) resultantes da sua atividade delituosa causavam vergonha alheia. Às primeiras horas da tarde soube-se que o chefe de Governo se reunira com o seu núcleo de colaboradores mais próximos e preparava uma intervenção pública.

As conversas entre Cerdán, García e Ábalos em diferentes momentos entre 2018 e 2021, segundo as gravações feitas por García e apreendidas pela Guarda Civil em rusgas domiciliárias e incorporadas no seu relatório pelo magistrado Puente, são a base do atual escândalo. Numa delas, García diz a Cerdán: “Isso para mim é exatamente igual. Foi o que ele me disse, mas vamos lá ver, eu recebi 450 mil do primeiro lote, que são três contratos, e 50 mil dos dois últimos contratos, não foi? E a seguir deram-me 70 mil, que era da indemnização pela parte lá de baixo, que são 570 mil. Pronto, de acordo. Essas são as minhas contas, não sei se são as tuas. […] É verdade que recebi 25, que foi o que me deram, e disso há outros 25, mas na realidade não [ininteligível] que não o têm”.

Noutra ocasião, Cerdán diz a García: “Diz-me de que são os 550”. Resposta de García: “Os 550 são de Múrcia, não é? Porque lhes deram duas obras, que são de 90 e 110, não é? Falta Tarragona, falta Logronho, que era 90, não é? E falta Sevilha, que era 100, não é? A de Tarragona, se bem me lembro, creio que eram 80 e picos, quase 90, e essas são as três que faltam, não é? A ele tinha de se dar já 450 mil, 450, e vocês deram-lhe 70…”. E García, noutro diálogo, a Cerdán: “Mas é que andam todos ao mesmo, hã? Olha, até em casa nos andam a foder. E é, é… olha, por Deus, arranja maneira de o Santos me receber cinco minutos, e eu consigo-te 450 mil euros. Mas num mês, porque sei como fazê-lo. Não, que se vá… homem, que se vá rir da puta da mãe dele. Já ando há um ano à espera de que me receba. E foi o Santos que disse ao… ao chefe, ao boss… que eu estava na procuradoria”.

Dado o teor destas palavras, circulou durante horas o rumor de que Sánchez, profundamente afetado pela situação, decidira demitir-se, dissolver o Parlamento e convocar eleições. Essa tese foi desmentida a meio da tarde pelas primeiras palavras do governante numa conferência de imprensa que, pela primeira vez durante o seu mandato, foi convocada para a sede do partido. Com ar abatido, Sánchez perdão aos espanhóis com insistência — oito vezes — e expressou “absoluta desilusão” com o comportamento de Cerdán, em cujas juras de inocência continuara a acreditar “até esta mesma manhã”.

Sánchez descartou demitir-se, reiterou que as legislativas acontecerão “quando deve ser”, no final de 2027, limitou o escândalo ao perímetro do PSOE e anunciou alterações imediatas na estrutura da direção do partido. Vai encomendar uma auditoria externa às contas dos socialistas, pois existem suspeitas de que parte das mordidas obtidas pela rede corrupta possam ter sido utilizadas para o financiamento ilegal do partido. Embora na tarde de quinta-feira as instruções para os dirigentes do PSOE e membros do Governo fossem de mutismo total, a maioria dos testemunhos obtidos indica que a resposta inicial e forçada do primeiro-ministro não bastava, e que a crise acabaria por afetar o Executivo.

Parceiros: resposta insuficiente

Os parceiros que sustentam o Governo de coligação — a frente de esquerda radical Somar, aliada do PSOE no Executivo, e forças regionais que lhe dão apoio parlamentar — mostraram-se mais exigentes. A segunda vice-primeira-ministra, Yolanda Díaz, rosto visível do Somar, defende que se torna “imprescindível” uma “reconfiguração profunda” da legislatura e do Governo. O Partido Nacionalista Basco (centro-direita) assegura que as explicações de Sánchez “não são suficientes” face à dimensão do escândalo. O Juntos pela Catalunha (centro-direita independentista) pediu uma reunião urgente ao Executivo para avaliar a continuidade da legislatura. E o Podemos (esquerda radical populista) afirmou através do seu líder parlamentar que as desculpas de Sánchez “não tapam a realidade”.

O jornal progressista “El País”, que costuma apoiar o Governo, também considera insuficientes as respostas dadas até agora. Num editorial de sexta-feira, assinala: “A implicação de Santos Cerdán nesta rede abre um rombo na linha de flutuação do PSOE, que chegou ao Governo com uma promessa de regeneração vinculada à luta contra a corrupção. E, sobretudo, na figura do primeiro-ministro: Cerdán não era apenas secretário de Organização, mas um homem de absoluta confiança de Sánchez. Com Ábalos já indiciado, é o segundo secretário da Organização envolvido no escândalo”. Escreve ainda o diário madrileno: “A resposta a este escândalo, completa e convincente, ainda está por chegar, como estão as suas consequências políticas: Sánchez está obrigado a contactar com os seus parceiros de investidura para que voltem a dar-lhe um voto de confiança. Se não o fizer, será evidente a sua debilidade. E é muito possível que o PSOE acabe por pagar um preço eleitoral por isso”.

Direita exige eleições

O presidente do PP, Alberto Núñez Feijóo, aproveitou o escândalo para reclamar, uma vez mais, a demissão de Sánchez e a convocação imediata de eleições. Disse que o Governo está “atolado num mar de corrupção”, mas recusou-se a apresentar uma moção de censura, convencido de que esta não passaria no Congresso dos Deputados: “Não lhe irei dar um balão de oxigénio”. Para mostrar distanciamento, o líder conservador fez questão de ostentar a sua não comparência ao ato celebrado na tarde de quinta-feira no Palácio Real de Madrid, junto do rei Filipe VI, para comemorar o 40º aniversário da assinatura do Tratado de Adesão de Espanha e Portugal às Comunidades Europeias. “Apertar a mão a Sánchez nas presentes circunstâncias seria como converter-me em seu cúmplice”, explicou.

O escândalo de corrupção no PSOE não é a única preocupação judicial que Sánchez enfrenta. Estão em fase de instrução processos contra a sua mulher, Begoña Gómez, por suposta corrupção nos negócios nas suas atividades universitárias; outro contra o seu irmão David pela alegada criação ad hoc de um posto de trabalho na Deputação de Badajoz para o favorecer. O procurador-geral do Estado, Álvaro García Ortiz, nomeado pelo chefe do Executivo, enfrenta um processo penal por suposto delito de revelação de segredos: um juiz acusa-o de divulgar um documento no qual Alberto González Amador — namorado de Isabel Díaz Ayuso, presidente do governo regional de Madrid e figura de proa do PP — admite ter defraudado o fisco em 350 mil euros.

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